sábado, 16 de maio de 2020


(...) quando criança observava o rasgo da orelha das pessoas, provavelmente porque eu não tinha orelhas furadas. Meu pai não quis que eu sentisse dor e não deixou minha mãe furar minhas orelhas ao nascer. Com o passar dos anos, o rasgo da orelha chamava ainda mais minha atenção. Quando pequena, bem pequena tenho a lembrança de ficar admirando o rasgo da orelha das minhas tias. E isso instigava meus pensamentos, atiçava minha imaginação. Ficava comparando rasgos compridos, rasgos abertos, rasgos com algumas rugas ao redor do rosto. Logo entendi que: quanto maior o rasgo, mais velha a pessoa era ou maior o peso do brinco carregado. O Tempo continuou a criar enredos e hoje ao olhar-me no espelho percebi o rasgo na minha orelha. Sim, o rasgo na orelha chega para todos! Lembrei da minha tia falando com aquela voz calma com entonação de suspiro do passar do Tempo. Hoje, ao acordar e ir para frente do espelho percebo que também tenho um pequeno e delicado rasgo na orelha. Viver é um rasgar-se e remendar-se, dizia Guimarães. Ter um rasgo na orelha é compreender o sopro do Tempo passado. Os anos vividos e as batalhas vencidas.
       Quantos rasgos eu precisei reconstruir, remendar, reinventar? Muitos! E mesmo nesses momentos tão duros, escolhi um lindo brinco que balançasse ao vento para enfeitar e embalar minha vida.
       Costurei e recosturei amizades, amores, trabalhos, estudos e a vida muitas vezes. Reconstruí sonhos, muitos sonhos: ora coletivos, ora individuais. Sonhos nossos, sonhos de tolo, mas sempre sonhos. Penso na adulta que sou e no rasgo da orelha que vi pela primeira vez, quando pequena. Hoje, tenho a certeza que valeu a pena cada recostura, cada ponta na vida, cada enlace. Descubro que continuo aquela menina que observava o rasgo da orelha e perdia-se em pensamentos enroscados de curiosidade. Permaneço a espantar-me, diariamente, com a vida e sei que é possível dar um ponto invisível no rasgo da orelha. Continuo com muitos pensamentos enroscados de curiosidade contemplando o que me acontece. 
       E o que me acontece?
       Tenho o meu rasgo da orelha para te contar.