sexta-feira, 23 de outubro de 2020

Ela colecionava sonhos que jamais se realizariam.

Caminhando por entre sonhos perdidos ela encontrou uma porta semi aberta. Um homem de olhar familiar acena para ela entrar. A sala amanhecida trazia na imagem da mesa um café não terminado. Vasculhou seu olhar por entre os objetos perdidos espalhados pelo chão. Olhou para o quarto tão próximo. Um quadro verticalizado refletia a imagem de uma pessoa totalmente estranha. Ao lado da luz, ainda acesa, uma vela consumia o recomeço. Andou para a esquerda e na estante viu seu livro preferido. Aproximou-se com cuidado mirando o homem que consentiu com um sorriso. Reconheceu sua assinatura na primeira página, uma dedicatória. Revirou o sentimento de pertença, entendeu o que tinha perdido. Suou frio e deixou-se cair por entre suas certezas. O homem ofereceu seu sonho perdido. Sentaram-se à beira da mesa. O livro ainda marcado, por caneta marca texto, revelava palavras pinçadas por quereres descobertos. Ela captou o olhar vazio, pensativo encontrando o seu. O homem folheia calmamente a vida deles em busca do sentido. O livro já amarelado e um pouco empoeirado vai reconstruindo uma memória esquecida, aquecida. Ficaram assim, a folhear o Tempo com a ajuda do Vento que soprava sem pedir licença palavras de coragem. A mão enrugada traçava o quanto tinham vivido e o tremor anunciava a delícia de recomeçar. Colocaram o livro de volta na estante com novas palavras marcadas por um suspiro. Ela contempla a estante, sai caminhando por entre a ventania. Olha para trás e seus olhares confessam: 

Ele só existia para completar o sonho jamais vivido!


sábado, 16 de maio de 2020


(...) quando criança observava o rasgo da orelha das pessoas, provavelmente porque eu não tinha orelhas furadas. Meu pai não quis que eu sentisse dor e não deixou minha mãe furar minhas orelhas ao nascer. Com o passar dos anos, o rasgo da orelha chamava ainda mais minha atenção. Quando pequena, bem pequena tenho a lembrança de ficar admirando o rasgo da orelha das minhas tias. E isso instigava meus pensamentos, atiçava minha imaginação. Ficava comparando rasgos compridos, rasgos abertos, rasgos com algumas rugas ao redor do rosto. Logo entendi que: quanto maior o rasgo, mais velha a pessoa era ou maior o peso do brinco carregado. O Tempo continuou a criar enredos e hoje ao olhar-me no espelho percebi o rasgo na minha orelha. Sim, o rasgo na orelha chega para todos! Lembrei da minha tia falando com aquela voz calma com entonação de suspiro do passar do Tempo. Hoje, ao acordar e ir para frente do espelho percebo que também tenho um pequeno e delicado rasgo na orelha. Viver é um rasgar-se e remendar-se, dizia Guimarães. Ter um rasgo na orelha é compreender o sopro do Tempo passado. Os anos vividos e as batalhas vencidas.
       Quantos rasgos eu precisei reconstruir, remendar, reinventar? Muitos! E mesmo nesses momentos tão duros, escolhi um lindo brinco que balançasse ao vento para enfeitar e embalar minha vida.
       Costurei e recosturei amizades, amores, trabalhos, estudos e a vida muitas vezes. Reconstruí sonhos, muitos sonhos: ora coletivos, ora individuais. Sonhos nossos, sonhos de tolo, mas sempre sonhos. Penso na adulta que sou e no rasgo da orelha que vi pela primeira vez, quando pequena. Hoje, tenho a certeza que valeu a pena cada recostura, cada ponta na vida, cada enlace. Descubro que continuo aquela menina que observava o rasgo da orelha e perdia-se em pensamentos enroscados de curiosidade. Permaneço a espantar-me, diariamente, com a vida e sei que é possível dar um ponto invisível no rasgo da orelha. Continuo com muitos pensamentos enroscados de curiosidade contemplando o que me acontece. 
       E o que me acontece?
       Tenho o meu rasgo da orelha para te contar.